quarta-feira, 23 de setembro de 2009

"MOTELx 2009": Balanço Dia 2

Após um 1º dia que não podia ter começado melhor, o 2º dia do Festival já se revelou um dia a sério com 6 filmes para ver e uma Sessão-Concerto (um filme português de 1929 musicado por Legendary Tigerman e Rita Red Shoes), mesmo se os próximos 3 dias iriam estar mais carregados, lógico tratando-se do fim-de-semana.
O dia começa com a apresentação de “Detective Story” de Takashi Miike, filme datado de 2007. O cineasta nipónico tornou-se ao longo dos anos presença obrigatória neste tipo de festivais mas depois de apanharmos tantas banhadas (“Ichi the Killer”, “Visitor Q”, “Big Bang Love, Juvenile A”, “Sukiyaki Western Django”, choose one!), não tivemos pena nenhuma em não poder ir a esta sessão.
A seguir, 2 sessões a escolha: a exibição do inédito “Long Weekend” de Jamie Blanks, mais um representante australiano da selecção, e “Edmond” de Stuart Gordon, primeiro filme a ser exibido no âmbito da homenagem dedicada ao mestre de terror norte-americano. Também não foi possível estar presente no MOTELx para estas sessões, falhando assim a primeira intervenção do próprio Stuart Gordon (mas amanhã não vamos falhar “Re-Animator”), no entanto, como vimos os dois filmes, podemos formular a nossa opinião.
“Long Weekend” é um remake do filme homónimo e também ele australiano, datado de 1978, realizado por Colin Eggleston e escrito por Everett De Roche. O jovem cineasta Jamie Blanks, sobretudo conhecido pelos seus slashers da era post-Scream como “Urban Legend” e “Valentine”, entretanto regressou ao seu país de origem, farto dos executivos de Hollywood, e dirigiu o survival um pouco mais respeitável “Storm Warning” cujo argumento foi da autoria do mesmo Everett De Roche, figura conceituada do cinema de género australiano dos anos 70 (“Patrick”, “Snapshot”, “Harlequin”). Surge então a ideia de fazer um remake do aclamado “Long Weekend” novamente com De Roche no screenplay com intuito de modernizar esta história perfeitamente actual hoje em dia de um casal desrespeitoso da natureza que irá ser castigado da pior forma por essa mesma Mãe Natureza.

No final, “Long Weekend” é um curioso filme que não convence verdadeiramente mas cuja singularidade não deixa de intrigar assim como a inspiração da dupla de actores consegue criar algum realismo no retrato complexo de relações humanas. O problema do filme de Jamie Blanks é não se tratar de um verdadeiro filme de terror. Ao contrário do seu compatriota Greg McLean, podendo-se comparar “Rogue” e “Long Weekend” através dos seus planos à partida similares sobre a natureza australiana e o que de inquietante se esconde nela, Jamie Blanks nunca consegue fazer do ambiente da sua história um ambiente ameaçador ou perturbador para além de faltar ao filme verdadeiras peripécias, as mesmas concentrando-se demasiado no fim do filme. No entanto, a reflexão sobre a violação da natureza pelo ser humano está interessante e subtil, graças nomeadamente a um Jim Caviezel perfeito em besta citadina ignorante e egocêntrica. Aliás o grande ponto forte do filme é o desenvolvimento da relação do casal de protagonista que traz credibilidade ao filme, sem esquecer uma ou duas cenas mais gráficas bem esgalhadas que provam que Jamie Blanks tem algum talento, nomeadamente a cena final que acaba o filme de forma muito cruel, deixando uma marca positiva no espectador.

Relativamente ao “Edmond” de Stuart Gordon, penso que o trabalho do realizador já não precisa de apresentação, sendo que os seus últimos filmes têm representado uma viragem extremamente interessante numa extensa carreira sobretudo marcada pelo amor da obra de Howard P. Lovecraft e uma predominância do gore slapstick. De facto, não nos podemos esquecer que Stuart Gordon começou no teatro experimental onde trabalhou entre outros com David Mamet. Esse background contestatário e vanguardista tem contaminado os seus últimos 3 filmes, “King of the Ants”,”Edmond” e “Stuck” (exibido no MOTELx 2008), uma inesperada trilogia do mal social que tem relembrado aos esquecidos que o norte-americano é sem dúvida um grande realizador. No caso do “Edmond”, o filme adapta uma peça de David Mamet (aqui também autor do screenplay) e mostra-nos numa espécie de “After Hours” sangrento como a superficialidade e o absurdo das nossas sociedades contemporâneas podem levar um homem banal a cometer o irreparável para tentar sentir que ainda está vivo, que não está completamente morto por dentro. Contando com uma performance notável de William H. Macy e uma realização seguríssima de Gordon, “Edmond” é uma fábula negra sobre os mortos-vivos modernos e reais que a nossa sociedade produz em cadeia. Um filme para reflectir e uma associação brutal de Stuart Gordon e David Mamet. Se ainda não viram, façam o favor de ir alugar o DVD no videoclube mais próximo.
Finalmente, chega a nossa hora de marcar presença no Festival, na sessão das 19h para o “Linkeroever” de Pieter Van Hees, com a presença do realizador e da actriz principal, Eline Kuppens. Para tal, tivemos de deixar de lado uma sessão paralela com o filme “Flick” do britânico David Howard, também presente no Festival, uma comédia de terror aparentemente bem simpática mas não se pode infelizmente ver tudo. Acontecimento agradável antes da sessão do muito sério filme belga, assistimos mesmo à nossa frente a uma entrevista do lendário John Landis que não desmente a sua reputação de showman ao pôr constantemente toda a gente a rir à sua volta com histórias, piadas e gestos grandiloquentes.
Passando à frente uma patética curta-metragem português em competição e louvando-se a simpatia e disponibilidade do realizador Pieter Van Hees em convidar os espectadores para ir ter com ele no fim do filme para trocar impressões, descobrimos então “Linkeroever” ou “Left Bank” em título internacional, que foi sem dúvida uma surpresa deste Festival, que também serve para ficar a conhecer novos cineastas e filmografias.

“Linkeroever” assume-se como uma obra diferente daquilo a que geralmente temos direito dentro do género e que acaba por pecar por um nítido excesso de austeridade mas desperta a nossa curiosidade por tratar-se de uma verdadeira proposta de cinema. Abertamente influenciado pelas obras de Roman Polanski, o realizador belga compõe um falso filme de terror que aposta em desenvolver uma atmosfera perturbadora de forma insidiosa e contida, escondendo-se profundamente na capa do filme realista. Herdeiro em termos de imagem da escola belga do filme social, Pieter Van Hees filma a sua história câmara ao ombro, com movimentos febris e bastante grão, sempre a acompanhar de muito perto a sua personagem feminina principal. O que poderia ser à partida um defeito, acaba por se revelar um ponto de diferença interessante, sobretudo porque o cineasta faz prova de uma verdadeira habilidade em utilizar este modo de expressão fílmico. Segura e imersiva, a realização surpreende e desmarca-se do habitual dos filmes de género, tirando o melhor partido de um orçamento minúsculo de apenas 700.000 €.
“Linkeroever” é assim um filme camuflado que curiosamente se revela bastante credível na pintura da sua cidade estranha e das suas personagens perdidas sob ameaça de um perigo desconhecido constantemente à espreita. Todavia, se o filme não convence a 100% é em grande parte por causa de um ritmo narrativo relativamente mal gerido que acaba por causar alguma frustração e tédio no espectador. É de facto sempre complicado gerir uma história que progressivamente promete que se vai passar alguma coisa e finalmente pouco acontece. No entanto, esta exagerada contenção é felizmente compensada por um final tenso, misterioso e enigmático em termos de interpretação, como se Pieter Van Hees tivesse travado o potencial horrífico e surrealista do seu filme até aos últimos minutos, recompensando in extremis o espectador e deixando inteligentemente por explicar vários aspectos deste atípico “Linkeroever”. Como dizíamos de início, resulta então um filme curioso, uma descoberta que intriga mais do que fascina mas que nos permite conhecer um realizador que dará certamente que falar num futuro próximo.
Para acabar bem este 2º dia do MOTELx e após optar por ir jantar nas calmas em vez de assistir à Sessão-Concerto (já agora um pouco de publicidade para o excelente restaurante Cantina Lx em Alcântara, conceito original a descobrir), foi “Martyrs” de Pascal Laugier na sessão da meia-noite que estava à nossa espera para pura e simplesmente nos arrasar como nenhum filme de terror nos arrasou desde os míticos filmes norte-americanos dos anos 70.

Conseguir transmitir através de palavras todo a potência do impacto de um filme como “Martyrs” é de facto uma tarefa muito complexa porque no final estaremos sempre longe da verdade. “Martyrs” é mais do que um filme, é uma experiência visceral, neste caso no verdadeiro sentido da palavra, palavra essa geralmente muito utilizada mas aqui plenamente correcta como raramente o é. À primeira vista, o filme de Pascal Laugier aproveita o género em voga do torture porn mas enquanto filmes como “Hostel”, a saga “Saw”, etc., são no melhor dos casos apenas rides jubilatórios ou no pior filmes oportunistas vazios de sentido, “Martyrs” leva o género ao extremo numa óptica quase intelectual sem nunca esquecer de utilizar todas as armas poderosíssimas do cinema de género. O resultado é assim praticamente inédito no género do terror porque o radicalismo extremista de Pascal Laugier que nunca, mas mesmo nunca, escolhe a facilidade e faz concessões ou piscares de olho ao espectador, é absolutamente impressionante.
Assumindo sem hesitações a sua visão sem desviar de um milímetro do caminho que se propôs trilhar durante a sua história, Pascal Laugier redefine com ousadia e uma segurança inacreditável (é apenas o seu segundo filme!) o que já alguma vez sentimos à frente de um filme de terror. Porque temos de admitir uma coisa, é impossível gostar de “Martyrs” no sentido puramente etimológico da palavra. Frente a tanta dor e tanta crueza, só queremos que o calvário acabe depressa. Mas se sentimos isso é precisamente porque em termos cinematográficos o filme é perfeito e tocou-nos como raramente um filme nos tocou.
Com uma introdução enigmática que mistura melancolia e ambiente de yurei eiga, a primeira parte do filme funciona quase como um filme dentro do filme, interessando-se pela personagem Lucie (admirável Mylène Jampanoï num papel extremamente difícil), adulta que em criança sofreu um rapto e inúmeras torturas. A primeira força de Pascal Laugier é conseguir de início e muito rapidamente instalar-nos na história e interessar-nos pelas personagens. Sem nos deixar respirar um segundo, é um verdadeiro dilúvio de violência que nos assola num estilo totalmente realista longe do filme de terror tradicional. Privilegiando a precisão da câmara com ângulos fatais aos efeitos estilizados e clipescos que gangrenam os actuais filmes norte-americanos da moda, Pascal Laugier consegue uma imersão total do espectador e consegue um equilíbrio complicado de atingir entre empatia e ambiguidade.
A outra força do realizador, que demonstra o total domínio sobre aquilo que quer transmitir, é nunca se ficar por um género definido. Utilizando os códigos do survival parasitados por um ambiente no limiar do fantástico em termos de acontecimentos mas com uma estética de drama intimista constantemente minado por planos violentos directamente extraídos do shocker mais violento dos anos 70, e com uma pitada ainda de filme de fantasmas hardcore, “Martyrs” consegue de forma fascinante extirpar-se do “género” para ganhar uma dimensão superior sem nunca deixar de pagar o seu tributo a todas as influências do cineasta (desde os mestres europeus como Dario Argento a quem o filme é dedicado até aos mestres norte-americanos do terror dos anos 70).

Esta primeira parte não revela portanto nada do mistério do filme e abre progressivamente a porta à dimensão filosófica e metafísica do filme, sendo que nada nos preparou àquilo que vamos assistir a seguir. A violência das imagens que se seguem, suporta da forma mais visceral possível uma reflexão profunda sobre todas as noções presentes nos filmes de terror, ou seja, a dor, a desumanização, a dualidade vítima/carrasco, a perda de identidade, a passagem a um nível superior de consciência e mais ainda. Depurando ainda mais o seu estilo visual à medida que o filme avança e deixando como raramente se viu os fabulosos efeitos especiais de maquilhagem do sobredotado e recentemente falecido Benoît Lestang assumirem um papel narrativo decisivo, Pascal Laugier, através do percurso inesquecível da sua segunda personagem principal Ana (uma interpretação de Morjana Alaoui absolutamente alucinante), partilha a sua visão negra e pessimista do mundo com uma raiva e uma ambiguidade que não poderão deixar ninguém indiferente (o público habitualmente agitado do MOTELx nem tugiu nem mugiu durante a hora e meia de projecção).
Verdadeira ferida aberta sobre o mundo, “Martyrs” é um grito do fundo da alma de Pascal Laugier (um cineasta a seguir de muito perto) que nos diz que a sociedade tem de mudar urgentemente, uma mudança vital para a nossa humanidade, mesmo se o preço a pagar é uma dor insuportável, e onde a promessa de um além purificador não pode nunca servir de pretexto ou de justificação a todas as ignomínias e abjecções. Com um final ambíguo à imagem do filme, “Martyrs” é um pedaço de cinema como raramente se fez, cinematograficamente perfeito e tematicamente desafiador e inteligente, um filme que marcará qualquer espectador para sempre. No final, uma necessidade fílmica e um reencontro com o propósito original do filme de terror, “acordar” física e psicologicamente o espectador. Indispensável e simplesmente o melhor filme do Festival!
Completamente arrasados, saímos do São Jorge já passava das 2h da manhã mas espera-nos mais um grande dia amanhã sexta-feira com o aguardado “Sauna” de Antti-Jussi Annila, o filme de culto “Re-Animator” apresentado por Stuart Gordon himself, o tailandês “4Bia” com várias histórias e realizadores e ainda o doentio “Mum & Dad” de Steven Sheil.

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