quarta-feira, 12 de novembro de 2008

"Blue Velvet": mysteries of love

Ano: 1986
Realização: David Lynch
Argumento: David Lynch
Fotografia: Frederick Elmes
Montagem: Duwayne Dunham
Música: Angelo Badalamenti
Elenco: Kyle MacLachlan, Isabella Rossellini, Laura Dern, Dennis Hopper, Brad Dourif e Dean Stockwell
IMDB


1984. É um David Lynch de apenas 38 anos que já se encontra desgastado pelo oportunismo e venalidade dos estúdios, tendo em conta os inúmeros problemas que o seu ambicioso space-opera “Dune” enfrentou.
Assim, após o fracasso financeiro do filme, o jovem cineasta, que o sucesso crítico e comercial de “The Elephant Man” subitamente revelou, vê alguns dos seus projectos irem por água abaixo, nomeadamente as sequelas de “Dune”, previstas por contrato, e sobretudo o projecto pessoal intitulado “Ronnie Rocket”, um filme demasiado bizarro e arriscado para que algum produtor aceitasse apostar.
No entanto, Lynch convence Dino De Laurentiis, produtor do amaldiçoado “Dune”, a financiar o seu novo filme, descrito pelo realizador como um thriller contemporâneo com heróis teenagers. O argumento do que viria a ser “Blue Velvet” foi escrito antes de “Dune” e é o primeiro argumento original de David Lynch desde “Eraserhead”. De Laurentiis aceita mas com a condição de que o orçamento fosse reduzido, neste caso para 5 milhões de dólares, e que o salário de Lynch fosse dividido em dois, recebendo a segunda metade apenas se se verificasse sucesso no box-office. Lynch aceita as condições de bom agrado, sendo sinónimas de liberdade artística total para o cineasta, o que não deixa de ser um luxo após a experiência traumática do seu filme anterior.
E é neste contexto que se concretiza “Blue Velvet”, dando nascença em 1986 ao David Lynch que conhecemos hoje. De facto, o filme contém já na altura todas as temáticas características do seu universo cinematográfico, até aqui apenas esboçadas no experimental “Eraserhead”, contidas no emocional “The Elephant Man” e dispersas no desequilibrado “Dune”. Mas o mais curioso é ainda constatar como “Blue Velvet” é a síntese perfeita entre uma certa ideia do classicismo cinematográfico e um universo de autor totalmente livre recheado de ideias bizarras e doentias, fazendo dele ainda hoje a obra-prima da filmografia de David Lynch.

Um mundo aos nossos pés

De facto, “Blue Velvet” é se calhar o filme mais importante de David Lynch. O filme matriz. É com esta obra que o cineasta assenta pela primeira vez o seu universo tão particular, criando uma receita/fórmula que será o ponto de partida de praticamente todos os seus projectos posteriores, como são exemplos o quadro escolhido (a pacata cidade do interior norte-americano) ou o esquema estrutural particular, aliás cada vez mais desconstruído ao longo da sua filmografia. É também aqui que Lynch começa a colaborar com pessoas que se irão revelar fundamentais na cimentação do seu universo. Primeiro, os actores, com uma segunda colaboração com Kyle MacLachlan, desta vez decisiva, Isabella Rossellini e sobretudo Laura Dern. Mais importante ainda, trata-se do primeiro encontro com o indispensável compositor Angelo Badalamenti, hoje em dia indissociável dos filmes do realizador e que já em Blue Velvet se conseguiu enquadrar na perfeição no universo lynchiano (remember a música Mysteries of Love).
Último ponto fundamental, é com este filme que David Lynch faz prova de toda a sua mestria em tornar bizarro e estranho qualquer evento mais banal do quotidiano. Nesse aspecto, a primeira cena do filme é sem equívocos. O cineasta introduz-nos na sua história através o retrato idílico de uma pequena cidade americana que transpira tranquilidade e perfeição. De repente, um pacato idoso que está a regar a sua relva tem um ataque cardíaco e cai, acompanhado pela câmara. E enquanto a apaziguadora música que dá o seu título ao filme está cada vez mais distante, a câmara faz uma profunda investida pelo meio da relva até nos mostrar uns escaravelhos pretos como a escuridão a devorar tudo à sua volta. Plano seguinte e repentino: um cartaz com o desenho de uma mulher sorridente e a menção “Bem-vindo a Lumberton”. E sem nos apercebermos, acabamos de entrar em Lynchtown para nunca mais sair de lá.
Esta cena na sua totalidade resume assim por si só o cinema de David Lynch, mostrando-nos a coabitação silenciosa, no sentido de complementaridade ao contrário de oposição, que existe escondida de todos entre o mundo da superfície, um mundo de luz, e o mundo subterrâneo, um mundo de trevas, onde a passagem constante entre um e outro se fará através de vários portais simbolizados pelas mais diversas coisas, desde uma orelha cortada encontrada num descampado até personagens femininas ambíguas e dúbias.

O efeito de dualidade

Essa dicotomia da dualidade é sem dúvida um dos princípios fundadores do universo lynchiano, como reflexo directo da duplicidade intrínseca do próprio ser humano, e, mais uma vez, essa noção nasce em pleno com “Blue Velvet”.
A mais evidente é obviamente a dualidade dos mundos que já citamos, a qual David Lynch procura constantemente exacerbar. Assim, não é inocente o ambiente do filme lembrar propositadamente a América dos anos 50, período fasto da história do país, cuja mistura com um ambiente mais contemporâneo, torna o filme literalmente intemporal. Partindo desta base, Lynch exagera o traço ao filmar o seu bairro de forma quase etérea que nem um paraíso (artificial claro) na terra, cheio de cores, crianças e pessoas bem parecidas. O choque progressivo com o outro mundo à espreita é assim duplicado porque insidioso, inesperado e particularmente brutal.
Outro efeito de espelho é também aquele que Lynch cria entre o seu herói e o espectador. O seu Jeffrey é o estereótipo do homem inocente e ingénuo, perfeito receptáculo da nossa identificação mas igualmente da nossa vontade de descobrir o que se esconde, o que Jeffrey não vai deixar de tentar fazer, mesmo que isso implique perigo e eventualmente perder a sua alma. E para além de partilhar com Jeffrey essa vontade de descoberta e liberdade, também partilhamos o facto de não estarmos minimamente preparados para entrar no universo que o realizador nos propõe descobrir. Daí que sejamos levados numa viagem aos confins da loucura, do doentio, do mais negro que o Homem é capaz de criar, da qual poderemos não voltar ilesos.
Por fim, a dualidade mais perversa e reflexiva está nas próprias personagens, balizada por dois eixos principais: Jeffrey/Frank e Sandy/Dorothy.
Utilizada até a exaustão nos seus filmes seguintes (“Twin Peaks” – Laura Palmer/Maddy Ferguson, “Lost Highway” – Renee Madison/Alice Wakefield, “Mulholland Dr.” – Betty Elms/Diane Selwyn, “INLAND EMPIRE” – Nikki Grace/Susan Blue), esta duplicidade ambígua é mais uma vez a ilustração do que nos caracteriza como seres humanos, ou seja, a parte interior onde coabitam inocência e perversidade, ou, em termos mais genéricos, a nossa parte de luz e a nossa parte de escuridão.

Mas a grande diferença é que, contrariamente aos seus filmes posteriores, David Lynch utiliza esta noção de duplo de forma subtil sem surrealismo assumido, deixando o espectador desvendar progressivamente os sinais que vai deixando, tipo migalhas. Portanto, se após vários visionamentos do filme não há dúvidas que Sandy (a loira Laura Dern) e Dorothy (a morena Isabella Rossellini) representam uma única mulher, esta afirmação não é evidente à primeira vista. Aliás as duas personagens femininas podem ser encaradas como as duas faces de um mesmo universo dividido em dois para o qual elas representam uma passagem, um portal de acesso nos dois sentidos. É de facto Sandy que conta pela primeira vez a Jeffrey as conversas do seu pai polícia que surpreendeu, despoletando assim a entrada de Jeffrey para o outro lado onde o espera Dorothy. E após cada noite escaldante com Dorothy, Jeffrey regressa sempre para Sandy, continuando o seu inofensivo mas sincero namorisco com ela. Só quando Dorothy faz irrupção no universo de Jeffrey (na cena onde aparece nua e ferida à porta de casa dos pais dele), situando-se temporariamente do mesmo lado que Sandy, Jeffrey vê-se na obrigação de resolver as coisas e terminar a história aceitando que o seu lugar é do lado da luz junto de Sandy.
O outro eixo é inegavelmente Jeffrey/Frank, como se o segundo fosse o reflexo deformado do primeiro, constituído de tudo o que de doentio Jeffrey inconscientemente reprime na parte mais recôndita do seu ser. Há sem dúvida um sentimento de amor/ódio, de repulsa/fascínio de Jeffrey em relação a Frank, o que se comprova várias vezes quando Jeffrey em pleno voyeurismo fica evidentemente excitado pela relação sexual perturbadora e reprovável entre Frank e Dorothy, violência que Jeffrey chegará a reproduzir mais quando incentivado por Dorothy em momentos de intimidade. Está portanto implícito o fascínio de Jeffrey pela liberdade total da qual usufrui Frank, conferida pela sua loucura, e mesmo se, em última instância, Jeffrey consegue in extremis não ser corrompido por um Frank incontrolável que lhe diz na cara “És como eu” antes de lhe fazer uma declaração de amor (a noção de homossexualidade também está presente) que acabará com uma carga de porrada.

Um classicismo pervertido

É então este constante vaivém, esta mistura orgânica, este confronto brutal, esta reflexividade subtil e imparável entre dois mundos indissociáveis que fazem toda a particularidade de “Blue Velvet”.
Mas, no final, o último ingrediente decisivo que faz do filme uma autêntica obra-prima, cujo poder de fascínio no espectador ainda se mantém intacto após mais de 20 anos, e a obra maior da filmografia de Lynch, é a forma como o cineasta utiliza todos os artifícios clássicos de filmagem e de narração para imperceptivelmente deturpar ao longo da sua história esses códigos e fazer penetrar o bizarro e o inconfessável no quotidiano mais banal.
O espectador distraído poderá portanto ficar-se pela capa de thriller hitchcockiano, declarada influência de David Lynch, sobretudo o filme “Vertigo” e a sua dupla figura feminina. Tudo à partida no filme aparenta classicismo, a composição das imagens, os quadros seguros, a fotografia jogando com texturas e cores evidentes, o casal de heróis estereotipados, o final feliz onde tudo volta ao seu lugar e à “normalidade”.

A inteligência de David Lynch, demonstrando uma maturidade fílmica muito precoce (é apenas a sua 4ª longa-metragem), é utilizar esse classicismo aparente para enaltecer a estranheza ambiente e o doentio de várias situações. Ao normalizar o seu cinema consegue-nos aspirar sem restrições para o seu universo muito particular e, ao tornar quase triviais as suas imagens, é a sua própria realização que se encontra em consonância com o propósito do filme, ou seja, imagens banais que mostram coisas tudo menos banais, mais uma vez a dualidade neste caso directamente imprimida na película pelas escolhas técnicas e visuais de David Lynch.
Assim, resulta no ecrã um paradoxo fascinante que se traduz no facto de imagens por vezes de uma simplicidade desconcertante transmitirem com um impacto fortíssimo um mau estar e um sentimento perturbador que imagens mais trabalhadas ou artificialmente arrojadas não conseguiriam aqui transmitir com a mesma força evocativa (não vamos por exemplo esquecer que na altura o filme foi recusado pelo Festival de Veneza por pornografia!).
Da mesma forma, David Lynch distorce sub-repticiamente a narração típica do thriller misterioso. O thriller tradicional americano é por essência explicativo e lógico, ficando todas as questões levantadas ao longo do filme resolvidas no final. Com “Blue Velvet”, Lynch dá essa falsa impressão mas é exactamente o contrário que se passa, ficando muitas peças do puzzle por encaixar e muitos comportamentos das personagens por explicar. Vários buracos vêm assim contrariar a suposta linearidade do argumento, as motivações racionais de Frank em raptar o marido e o filho de Dorothy não são explicadas, o mistério à volta de um suposto 3º homem não leva a nenhuma conclusão particular, o massacre final é enigmático e estranho (o yellow man gravemente ferido mas que se aguenta em pé sem cair), o bizarro comportamento do detective Williams com Jeffrey para o qual nunca haverá justificação, as figuras do marido e do filho de Dorothy nunca são verdadeiramente mostradas (o primeiro só aparece morto e o segundo é mostrado furtivamente de costas só no final), sem falar dos comportamentos esquisitos das personagens, até dos próprios pais de Jeffrey que praticamente nunca falam e parecem literalmente estarem noutro mundo.
“Blue Velvet”, falso thriller mas sim verdadeiro sonho/pesadelo acordado, porém um sonho estruturado que subtilmente vai dando os seus toques de estranheza, contaminando uma história à partida banal. Daí que o filme seja a obra mais perfeita de David Lynch, no sentido que não há nada de mais difícil do que jogar simultaneamente, tipo um equilibrista, com um 1º nível de leitura estruturado, compreensível e facilmente assimilável e vários outros níveis de leitura em filigrana que permitam elaborar mil e uma interpretações ou descobrir um conjunto infinito de pormenores. Abandonando progressivamente esse 1º nível de leitura estruturado e implicativo nos seus filmes posteriores, Lynch evoluiu mas nunca reencontrou a perfeição e a mestria alcançada em “Blue Velvet” por excesso de desconstrução e anarquia.

Com um belo sucesso crítico e comercial, “Blue Velvet” foi duplamente benéfico para David Lynch. Por um lado, permitiu-lhe recuperar do desaire vivido com “Dune” e recuperar uma viabilidade nos olhos da indústria. Por outro, o cineasta criou aqui da forma mais deslumbrante possível o seu universo cinematográfico que nunca deixou de explorar e desenvolver desde então. Por todas estas razões, “Blue Velvet” é simplesmente um filme indispensável.


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