domingo, 6 de julho de 2008

"The Cottage": crítica

Sinopse
Numa parte recôndita da província inglesa, um par de criminosos pouco profissionais negociam um resgate após terem raptado a filha de um poderoso mafioso. À medida que as coisas começam a correr mal devida à total incompetência dos raptores, esta longa noite transforma-se num verdadeiro pesadelo quando entra em cena um camponês psicopata bem decidido a limpar o sebo a toda a gente.

Comentário
O cinema de género britânico tem registado uma bela ressurreição nos últimos anos, o que é sem dúvida uma excelente notícia para todos os cinéfilos. O único problema é mais uma vez o facto do fã de cinema de género português ser obrigado a acompanhar essa nova vaga inglesa de bem longe.
Pois é, desde o início dos anos 2000 que muito poucos filmes deste tipo têm chegado às nossas salas de cinema. Aliás, tirando “28 Days Later” de Danny Boyle e “The Descent” de Neil Marshall, não há um filme de terror britânico que tenha estreado nos cinemas nacionais. Por onde andaram “Shaun of the Dead”, “Dog Soldiers”, “Deathwatch”, “Wilderness”, “Evil Aliens”, “Creep”, “Severance”, “Isolation” ou “28 Weeks Later”, entre outros? Tirando os que nem sequer chegaram cá ainda, os outros foram vilipendiados directamente para DVD no anonimato mais completo. E depois admiram-se que o cinema de género e de terror em particular não tenha público em Portugal!
Isto tudo para falarmos de um novo filme inglês que tenta a sua sorte na mistura tipicamente britânica da comédia negra com o terror gore, “The Cottage” de Paul Andrew Williams. E como não podia deixar de ser, o filme acaba de aparecer nas prateleiras dos videoclubes sem mais nem menos com o título ridículo “Rapto Macabro”. Quando se vê o que por vezes estreia no cinema (por exemplo, “Awake” ou “The Breed”, filmes que nem mereceriam estrear em DVD), é sem dúvida o nosso dever falar desta pérola para que o máximo de fãs de cinema de género o possam ver.

À primeira vista, “The Cottage” apresenta-se como um “Severance”-like, ele próprio bastante inspirado de “Shaun of the Dead”, obra-prima do género e sem dúvida um filme matriz. Todavia, olhando melhor para o filme de Paul Andrew Williams, as referências são finalmente a ir buscar a outros filmes. Pela sua estrutura bipartida com duas partes bem distintas, a primeira referência que nos vem à memória é o “From Dusk Till Dawn” da dupla Tarantino/Rodriguez. De facto, reencontramos aqui a mesma sensação de surpresa quando repentinamente o terror e o gore se introduzem na história sem avisar. Para além do filme ter por base principal a relação de amor/ódio entre dois irmãos que tudo diferencia. São os diálogos saborosos entre eles, as desavenças, as picardias, o amor incondicional que se revela na adversidade, que se assumem como o motor narrativo do filme.
Mas as comparações com o filme de vampiros de Robert Rodriguez e Quentin Tarantino ficam-se por aqui porque a inegável referência de Paul Andrew Williams é outra dupla, os Irmãos Coen. Essa filiação assumida, tanto a nível narrativo como visual, é sobretudo patente na primeira parte, autêntico filme noir absurdo onde a cadeia de eventos vai de mal a pior por inteira culpa das personagens, mais cromas umas do que as outras. Aproveitando muito bem os seus poucos cenários (uma casa, as suas divisões e o exterior da mesma) com uma realização sóbria mas dinâmica e fluida, Paul Andrew Williams torna empolgante o que geralmente é o calcanhar de Aquiles dos filmes de terror tradicionais: a primeira parte do filme com a apresentação das personagens e a definição das linhas narrativas.
Graças a uma boa gestão do espaço, a uma realização virtuosa e inventiva mas sem show-off inútil (um belo plano-sequência imersivo à la Scorsese, uns slow-motion significativos, uns travellings laterais envolventes) e uma caracterização jubilatória das suas personagens (o irmão mais velho tough guy mas rodeado de toscos, o irmão mais novo ingénuo e fraco completamente ultrapassado, um parceiro de crime burro e incapaz, uma vítima mais feroz e doentia que os seus raptores, uma dupla de asiáticos psicopatas tão ridículos quanto perigosos), Williams consegue nos envolver na sua história à partida limitada e, melhor ainda, faz-nos esquecer da melhor maneira que estamos num suposto filme de terror.
Essa constatação, que poderia se revelar um verdadeiro ponto fraco, acaba por beneficiar o filme porque, quando o terror começa, a surpresa é ainda maior e todo o final ganha então em eficácia graças ao trabalho de narração e de caracterização desenvolvido até aqui.
Curiosamente, o sucesso desta escolha narrativa arriscada deve-se sem dúvida ao facto de Paul Andrew Williams não ser um incondicional dos filmes de terror. O seu primeiro filme, o interessante e emocionante “London to Brighton”, deu-nos a conhecer um realizador adepto da escola inglesa do cinema-vérité à la Ken Loach ou Mike Leigh, mesmo se Williams já recorria a um cinema bem mais visceral do que os seus conceituados compatriotas.

Assim, à partida um handicap, o facto do cineasta não ser de todo um fanboy permitiu uma abordagem completamente diferente ao género, o que bem poderia servir de exemplo a alguns supostos realizadores amantes de filmes de terror. Sobretudo porque, quando o terror e a violência gore irrompem no ecrã, Paul Andrew Williams está perfeitamente à vontade e leva-nos num ride final in your face perfeitamente equilibrado entre brutalidade sem concessões e cómico de situação principalmente físico. Explorando mais além o seu ambiente visual baseado num contraste entre luz interior e escuridão exterior, toda a parte final é exímia em fazer-nos sentir um mix de desconforto e de riso nervoso, sempre preocupados com as personagens.
Recuperando um pouco a estrutura de “The Texas Chain Saw Massacre” de Tobe Hooper mas concentrada em cerca de meia-hora, o cineasta ainda consegue criar uma figura de boogeyman trágica e assustadora. Toda a perícia de Williams é precisamente manter o seu ambiente cartoonesco com uma violência hardcore (golpes de pá no focinho, quedas ao pisar ancinhos, uma perna a ser apanhada na inevitável armadilha para animais, etc.) ao mesmo tempo que desenvolve um verdadeiro survival visualmente impressionante, filmado num 2.35 ousado em vez do habitual 1.85 deste tipo de filme, e no limiar do fantástico como com a fabulosa cena do boogeyman a arrancar a espinha de uma vítima ao luar num plano herdado do “Predator” de John McTiernan. Sem falar de um final à imagem do filme, trágico e cómico ao mesmo tempo. Por fim, não podemos deixar de mencionar um elenco particularmente inspirado com destaque especial para a dupla de irmãos com um Andy Serkis genial (Gollum himself) e um Reece Shearsmith hilariante (a fabulosa série cómica “The League of Gentlemen”).
Portanto, em vez de ir ver uma bosta no cinema, por favor alugam “The Cottage” de Paul Andrew Williams, uma proposta irrecusável para o fã de cinema de género inventivo, divertido, gore e superiormente realizado. Um pequeno must!

1 comentário:

Marisa Borges disse...

Não poderia ter lido uma crítica melhor, de facto, as tuas palavras descrevem na íntegra as várias sensações que o filme nos dá. Concordo plenamente com a referência aos Coen e, como muito bem dizes, este filme é um must, que aconselho a ver, pelo menos a quem anda com ressaca de ver bons filmes gore.
Keep the good work!